Uma história de amor eterno

segunda-feira, setembro 22, 2014 2 Comentários A+ a-


             Eu sempre achei que você ficava lindo me olhando só de cueca, com o cabelo bagunçado e a barba começando a crescer. E, esperto do jeito que você sempre foi ainda fazia aquela carinha de “vem me dar amor e me encher de beijinhos”, porque você sabia que eu não resistiria ao conforto da tua mão boba brincando comigo, ao calor dos nossos corpos misturados, totalmente perdidos um no outro. E foi exatamente por isso que, no dia que a gente foi morar junto, você inventou de comprar uma cama King size, tão grande que caberiam dois de nós e ainda sobraria espaço. Eu fiquei te olhando sem acreditar, afinal a gente precisava economizar pra pagar o aluguel e comprar mais móveis. Você sorriu daquele jeitinho matreiro e me disse que tinha valido cada centavo. Nós fizemos loucuras naquela cama e eu nunca me arrependi, acho que nem você. Nunca me arrependi de ter aceitado sair da vida de solteira pra me enganchar no teu abraço de urso, pra ir contra todo mundo que me dizia o quanto isso nunca daria certo, e provar que a gente não precisava dar certo pra ser feliz. Mesmo quando briguei com a minha mãe, que sempre disse que o que a gente fazia era pecado, e bati na sua porta toda ensopada da chuva que caía feito dilúvio no centro da cidade, segurando uma mala preta enorme nas mãos e um bocado de lágrimas no rosto.

           Passei um tempão sem falar com a minha mãe, evitando o telefone nas datas comemorativas e chorando no seu peito enquanto eu sentia a falta que ela me fazia. E suas mãos cheias de calos me envolviam e acalmavam enquanto seus dedos tiravam meus cabelos da frente do rosto ensopado de lágrimas frias. E então a gente ficava assim até eu me acalmar ou pegar no sono e você me carregar para aquela cama enorme e me cobrir como se eu fosse uma criancinha doente. Acho que você deve ter acreditado que eu me arrependia de ter te aceitado, mas eu nunca chorei por isso, nunca nem pensei nisso. Mesmo nas nossas brigas terríveis em que eu falava coisas que nunca deveriam ser ditas, e você gritava palavrões e levava as mãos até a cabeça para não me dar os tapas que, nós dois sabemos muito bem, eu merecia. Mesmo quando saíamos batendo as portas, jogando coisas e chorando como idiotas, mesmo nessas horas eu nunca me arrependi de ter te amado, tão intensa e verdadeiramente, como eu amei.

           Então chegamos a dois anos morando juntos e você me disse que estava pensando em oficializar. Eu levei uns três minutos olhando pro seu rosto para entender que você estava me propondo casamento. Arregalei os olhos e me engasguei com o vento, não vou mentir e dizer que casar era o grande sonho da minha vida. Você sabe que nunca foi, e eu, nesses dois anos, nem sequer havia cogitado isso. Não faço muito bem o papel de dona de casa, nem sequer conseguia fazer um arroz que ficasse tão bom quanto o seu. Nunca tive paixão pela cozinha e não levo jeito pra seguir receita e passar a tarde inteira na frente de um fogão – Não sem ao menos queimar meus dedos da mão. – Mas você nunca se importou com isso. Sempre que podia, corria pra fazer a comida enquanto eu me encarregava de ir estudar e trabalhar pra gente conseguir pagar as contas e a nossa empregada. E você cozinhava, fazia questão de me ver comendo na sua frente e eu adorava como seus olhos brilhavam enquanto eu engolia. Sempre houve essa necessidade de cuidar de mim, acho que você sabia que eu sempre fiz tudo sozinha. De que eu nunca deixei alguém cuidar de mim, nem mesmo a minha mãe. Você sabia que eu tinha a mania de carregar todas as dores do mundo nas costas, inclusive as suas, e que isso me quebrava aos poucos. Isso tudo estava me consumindo. Então você me ofereceu o peito, a alma, o corpo. Me viu chorosa, suja, doente e me carregou no colo quando a minha anemia quase me matou. Viu todos os meus lados, os bonitos, os feios e aqueles que eu tentei ao máximo esconder de você. Você viu cada marca no meu corpo, cada defeito que eu tanto odiei, e você não se importou. Cada parte minha, cada maldita parte minha te pertencia sem meios termos ou vírgulas ou pontos finais. Sempre, desde o momento que você sorriu pra mim naquele corredor da livraria, rindo enquanto eu olhava pras dezenas de livros que eu queria comprar e fazia aquela cara. A cara de quem queria tudo e sabia que não podia. A cara que eu fiz quando você me convidou pra sair e aí a gente se beijou pela primeira vez.

         Meu Deus, você ainda se lembra disso? Nosso primeiro encontro foi o maior desastre da face da terra. A gente ficou tão envergonhado que levamos quase três horas pra nos beijarmos e eu ainda fiquei rindo porque sua barba fazia cócegas no meu rosto. Foi tão ruim que marcamos um segundo e depois um terceiro encontro, porque o ruim com você sempre era bom, sempre era mais do que bom. Aí eu acabei no seu apartamento de mala e cuia, e foi a primeira vez que a gente fez amor. Depois que eu comecei a chorar a sua frente, com as lágrimas se misturando com as gotas de água que caiam do meu cabelo e pingavam no chão. Eu tremendo feito um cachorro molhado, em parte porque fazia -dois graus em Floripa e em parte porque eu tinha tirado todas as armaduras em torno da minha alma. Muros e muros que construi em torno de mim, fugindo do que eu sentia, fugindo do que eu poderia sentir por alguém. Mas eu nem percebi que de tanto me esconder, perdi a mim mesma no meio de tudo isso. E foi somente quando você, com seus olhos verdes e os cachos desalinhados, sorriu feito o maior idiota da face da terra, e então eu, que não procurava nada, havia sido encontrada.

           E eu sempre soube disso. Quando você chegava de mansinho depois do trabalho e me encontrava lavando louça só de calcinha e aquela minha blusa velha de Zelda, que de tão usada já tinha mais furos do que um coador.E você chegava beijando meu pescoço e destruindo toda a força que eu tinha, toda a minha linha de mulher bem-feita.E eu sabia. Quando você deitava do meu lado, mesmo depois de dois anos, e ficava me olhando como se eu fosse a estrela mais brilhante da sua constelação, eu sabia. Mesmo sem maquiagem, sem roupas caras ou saltos, eu sabia. Mesmo sem você dizer sequer uma palavra, eu sabia. Sabia que uma vida com você era uma vida completa. Uma vida onde sentir medo não parecia errado, onde cada passo meu era apoiado por você e vice-versa. Não existia mais um “eu”, éramos nós e seríamos para sempre. Eu nunca me sentiria sozinha enquanto tivesse você.

           E então você, naquela manhã fria de domingo, olhou no fundo dos meus olhos e disse que queria oficializar. E eu fiquei de queixo caído, com o coração na mão e um sorriso que, literalmente, ia de orelha-a-orelha. Quer dizer, mesmo que essa ideia não tivesse passado pela minha cabeça, e casamento nunca fosse meu plano, era você. Era seu pedido desajeitado pra gente se pertencer de todas as formas humanamente possíveis, porque só Deus sabia o quanto eu já era tua. Era o seu sobrenome que eu teria e seria uma aliança igual a sua que eu usaria. Então não havia outra escolha, não havia outra saída. Era ser feliz contigo ou não ser feliz nunca nesta vida.

           Começamos a falar do nosso futuro juntos. Eram tantas portas se abrindo, tantos sonhos sendo construídos naquele momento que eu comecei a chorar feito criança. Você disse que eu tinha que guardar as lágrimas pra depois que contássemos pra minha mãe, porque você fazia questão que fôssemos juntos dar a notícia. Afinal, já fazia dois anos que eu não falava com ela, e era a hora de acabarmos com tudo que impedia a gente de ser feliz. Ficamos rindo durante horas, falando da cara que ela faria quando soubesse. Rindo da tristeza, da dor, do medo, da solidão que sentimos um dia. E eu acreditei que, durante aquele dia, nada mais seria impossível para nós dois. Que, a partir de agora, conquistar o mundo seria ridículo. Eu tinha você, nada mais importava.

            Eu liguei pra ela um mês depois, disse que a gente queria comunicar uma notícia urgente e que eu e ela tínhamos muito para conversar. Saí do trabalho e fui primeiro. Bati na porta com o coração e as pernas vacilando, disse um oi apagado quando a mulher de cabelos e olhos iguais aos meus me convidou para entrar. Fazia tanto tempo que não entrava naquela casa que me senti uma estranha. Sentamos no sofá e eu contei pra ela tudo que eu sentia, tudo que eu acreditava e que mesmo que ela não concordasse, o que a gente fazia nunca poderia ser pecado. Era um milagre a gente se amar assim, com tantos defeitos e cicatrizes na alma. Eu disse pra ela que você era um homem bom, que era gentil e honrado. Disse que cada dia com você era mais importante que o outro, era mais completo. E que mesmo quando você deixava a tampa do vazo levantada ou a toalha molhada em cima da cama, era somente contigo que eu me imaginava junto pra vida toda.

            Mas então deu 18 horas e você não apareceu. Deram 19 horas e nem sinal seu. Nem sequer uma ligação, nem um SMS. Deram 20 horas e minha mãe falou que isso era só mais uma prova da sua incapacidade de ser o homem que eu merecia. Ela começou a falar um monte de coisa e eu comecei a gritar e chorar ao mesmo tempo, andando de um lado pra outro como se estivesse enjaulada. Sai daquela casa correndo. Liguei pra você umas 20 vezes e nada. Mandei mensagem, liguei pro seu serviço e eles me disseram que você já tinha saído. Cheguei ao nosso apartamento e continuei ligando. Pra você, pra todas as pessoas que a gente conhecia e nada. Nada. Já estava começando a entrar em pânico quando o meu celular tocou e eu, meio louca, derrubei um copo de vidro no chão. Atendi o celular ignorando tudo. Uma voz feminina perguntou se eu conhecia você e respondi que sim, que eu era sua noiva, nem me toquei que aquela era a primeira vez que eu dizia isso pra alguém. Aquela voz me disse que você tinha sofrido um acidente de moto estava no hospital e que precisava de alguém para preencher a ficha e trazer alguns documentos seus. Confesso que não ouvi mais nada depois da palavra acidente. Só peguei minha bolsa e sai correndo, feito uma maluca, pro hospital. Cheguei ao seu quarto depois de começar a gritar com todo mundo que via pela frente. Estava tão histérica que nem sequer me preparei pra encontrar você deitado em uma cama, todo cheio de tubos e aparelhos saindo pelo corpo. Seu rosto arranhado e branco como papel. Parecia uma versão zumbi do homem que eu conhecia. Um som pesado saia do seu peito enquanto você respirava com muito esforço, e eu só conseguia ficar ali paralisada na porta do quarto, te olhando como se nunca mais pudesse me mover outra vez. Você chamou meu nome e joguei a bolsa no chão e corri pra você, ignorando o cuidado e todos os fios que ligavam seu corpo às máquinas. Ajoelhei-me bem próximo do seu rosto e beijei seus lábios com todo o cuidado que eu nunca tive com mais ninguém. Você pediu desculpas, chorando pela primeira vez desde que te conheci, enquanto o seu soluço se misturava aos sons dos aparelhos do quarto. Aí eu, daquela forma delicada que só você sabe, te mandei calar a boca. Eu disse: Amor, não me faça querer te bater agora. E você riu, te ouvir rir deixou meu peito mais leve. Tentei ficar calma, embora o choro estivesse preso na garganta, e te deixei chorar por nós dois, não podia ser a garota fraca agora. Eu disse que você ia ficar bem, que tudo daria certo e que a gente iria se casar logo. Sem a minha mãe, sem ninguém além de nós dois e uma versão do Fredy Mercury vestido de padre. E que a gente iria pra uma ilha deserta para fazer amor enquanto o sol nascesse, do jeitinho que tínhamos sonhado antes. Eu disse que você sempre foi meu melhor amigo e que era o herói que meu pai nunca tinha sido pra mim. Você era o homem que eu espelhava todos os outros homens, a minha fonte de luz. Fiz você prometer que iria voltar pra mim, que iria voltar pra casa. Eu não deveria ter feito isso com você, ficar prometendo uma coisa dessas. Mas o desespero era tão grande que eu me apoiaria em qualquer coisa que te mantivesse vivo, até mesmo fazer você jurar que voltaria. Então você concordou, concordou que voltaria para mim. E naquela madrugada você fez as primeiras promessas que não sabia se poderia cumprir. Você disse que me amava, disse que amava o que eu tinha sido pra você, o que eu tinha dado a você. Eu não aguentei e chorei com a cabeça bem pertinho da sua, sentindo o cheiro de hospital e da sua loção de barba enquanto eu orava pela primeira vez na vida. Será que era culpa minha? Será que isso era uma punição pelos meus pecados? Pensei nas palavras da minha mãe, no rosto dela ao condenar nosso amor como um pecado. Eu pedi pra Deus me punir no seu lugar, mas que não tirasse de mim a única coisa que eu amava na vida. Implorei baixinho pra que Ele tirasse qualquer coisa de mim, menos você. Dá pra acreditar, amor? Eu estava pedindo pra um Deus que não acreditava que se fosse pra arrancar algo, que fosse algo meu. Não você, não você.

             Então na manhã seguinte eu voltei pra casa pra pegar uma peça de roupa e as suas coisas, mas nem adiantou de nada. Você entrou em coma no momento que eu saí do hospital e não acordou mais. Lutou uma semana e depois perdeu. Acho que só aguentou aquela semana por causa da promessa que eu te obriguei a fazer, a promessa que eu carrego comigo até hoje. Faz três anos que você se foi, querido, e eu ainda estou te esperando cruzar a porta vestindo só uma das suas cuecas Box e um par de meias. E me olhando com aquela sua carinha de “vem matar a saudade que a gente já ficou longe tempo demais”. Aquela carinha que derretia meu coração e que era tão diferente daquela que eu vi no dia que o seu caixão foi fechado e enterrado, deixando pra sempre a razão das minhas risadas sinceras, enterrado uma parte minha que nunca mais me permitiria conhecer a liberdade outra vez, a sensação de ser completa. E, mesmo depois de tanto tempo, me deixar te amar como se não tivesse passado nem sequer um dia. Porque, amor, o que eu sinto por você ainda cresce no peito feito raiz de carvalho. Ainda dói e a dor só me lembra de que todas as nossas promessas foram quebradas e tudo que me restou daquela alegria foi a lembrança. E lembrar é um tormento que me mata.



- Cora.

Textos, frases, crônicas, drama e uma mistura de coisas que só quem sente pode entender. O blog é uma mistura de tudo aquilo que passa na minha confusão mental, um pouco de crítica, um pouco de jogos, um pouco de tudo pra quem pensa em tudo.

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